quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

“Macbeth” (2015): a potência do sussuro

“Macbeth” ganha uma nova versão cinematográfica – a sexta, se nos fiarmos no IMDB –, conduzida pela batuta de Justin Kurzel e tendo como protagonistas Michael Fassbender e Marion Cotillard. 
Shakespeare, parece, nunca será uma má ideia. Sob o sol seguem desfilando pulsantes as torpezas que o bardo pôs diante das plateias populares que o aplaudiam, quatrocentos anos atrás. As trapaças, a ambição, o ódio, a violência. O autor é eterno porque o mal é eterno – eterno e sedutor, sob a luz da rampa como na tela do cinema. 
Amparado pela dupla excelente de atores que encabeça o elenco, este “Macbeth” torna-se obra memorável, mesmo que certas escolhas do diretor sejam discutíveis. Pulsa viva na tela, trazendo à baila os meandros da tirania, que ainda estende com força seus tentáculos, no Oriente e no Ocidente. Para isso, abdica do texto literal de Shakespeare em prol de soluções cinematográficas eficazes. 
Não se pretende, aqui, tecer a crítica sobre os elementos que afastam o filme da obra de Shakespeare. O interesse do “Macbeth” cinematográfico repousa, ao contrário, no que ele abdica do original. Um esforço curioso para os interessados na obra do autor é olhar o filme em diálogo com a ótima encenação da peça em cartaz no SESC da Vila Mariana, em São Paulo. 
A encenação paulistana – de Ron Daniels – dá com propriedade destaque ao elemento primordial do teatro, que é a palavra. Por mais que a ação fosse fundamental ao teatro de Shakespeare, ela era restrita ao espaço exíguo do palco do Globe Theatre, às encenações convencionais dos duelos de espada e a uma cenografia simbólica. 
Era a palavra que fazia o espírito do público voar em direção aos lugares imaginados pelo dramaturgo. Ron Daniels traz para a cena uma enxuteza nos elementos cenográficos que dirige ouvidos e olhos do público ao que é dito. 
E o que é dito reverbera. A ambição e a loucura de Lord e Lady Macbeth correm caudalosamente, como um rio que vem de emborcar o aguaceiro de uma tempestade. Brilham como a poesia, da qual a gente sorve mais as imagens e o ritmo do que a realidade poetizada. Daí a darmos de ombros para as alterações abruptas do estado de espírito de Lady Macbeth, cujas razões da voracidade primeira e da insânia final nos escapam. Porque Thiago Lacerda e Giulia Gam – o lorde e a lady paulistanos – têm o domínio da palavra, vibram-na bem, eles nos convencem plenamente. 
Já o cinema nos solicita por outras vias. Enquanto o teatro nos inquire com o dedo em riste, o cinema vem nos falar ao pé do ouvido. Porque os atores não têm o público diante de si, não precisam se impor pela voz para se fazerem ouvir pela última fileira da plateia. Marion Cotillard dá-nos, sussurrante, a lição. Sua Lady Macbeth convence porque ela é coerente com a substância do cinema: suave, rainha descida do trono da realeza até o chão-a-chão da humanidade. Tão real e – por isso mesmo – tão pouco shakespeareana. 
Tenho para mim que Shakespeare só sobrevive diante da objetiva cinematográfica quando ele deixa de ser Shakespeare. Especialmente o trágico, que tem como protagonista a hoje tão desacreditada “inexorabilidade do destino”. Quantas adaptações cinematográficas do bardo reputadas “fiéis” ao texto original não sobrevivem à prova do bocejo? À medida que as personagens cinematográficas se aproximam de nós e nos invadem, fazendo com que nos tornemos parte delas, elas nos obrigam a lhes demandar os porquês dos gestos que cometem. 
A versão de Kurzel, roteirizada por Jacob Koskoff, Michael Lesslie e Todd Louiso, retiram “Macbeth” do terreno do mito e inserem-no na realidade mesquinha de uma Escócia medieval muito próxima do nosso tempo. As bruxas horrendas do original, partidárias visíveis do demônio, dão lugar a fêmeas muito humanas. Quatro, da velha à criança de colo, representantes de todas as estações da vida, provas incontestes de que o mal está em toda parte, procria e se disfarça: o belo é o feio, o feio é o belo, já dizia Shakespeare. 
Do mesmo modo, o lorde e a lady, a quem a infâmia transforma em rei e rainha. As bruxas que surgem inopinadamente, no campo de batalha e no patíbulo, não são senão reflexos das almas dos protagonistas. O mal está dentro de cada um, basta adubá-lo. Ao pé do altar, lady Macbeth clama a Deus que a transforme, de mulher delicada, num guerreiro belicoso. O fardo da escolha será carregado pelo tempo que lhe resta de vida. 
Marion Cotillard, pequena e suave, dá muito bem relevo a esta dimensão da personagem, trazendo-a constantemente a lutar contra a sua feminilidade, vestindo a alma da carapaça do macho lutador. Seus solilóquios são mergulhados numa beleza triste, misturando-se, às palavras, os primeiros planos do rosto da atriz, no qual se imprime o torvelinho que lhe vai pelo espírito. 
Michael Fassbender é uma preciosa contraparte para Cotillard. Da inversão primeira dos papéis, em que a mulher imporá ao seu homem que rumo tomar, até os píncaros da tirania, com fortes laivos de loucura – toda esta gama de sentimentos é expressa com precisão pelo ator. 
O fraco do filme são seus elementos mais propriamente “espetaculares”, obrigação devida a essa nossa época tão afeita às pirotecnias do 3D. 
As cenas de batalha – os conflitos grafados naquele slow motion oriundo de “Matriz” – são de um estetismo vazio. E certas supressões são incompreensíveis: a metáfora da floresta que se move poderia ter sido mais bem explorada. 
Mas quem se incomoda com essas ninharias quando tem diante de si Cotillard e Fassbender, dois dos maiores artistas do nosso tempo? Seus duelos afetivos e intelectuais são de um brilhantismo ao qual estamos desacostumados, pobres diabos que somos, fadados a um cinema cheio de som e fúria significando nada... 
A dupla traz aos protagonistas uma dimensão importante de “Macbeth”: a paixão – na total acepção da palavra – que os move. Do delírio amoroso, à cólera, ao martírio, à irracionalidade, toda esta vasta gama de sentimentos está bem expressa neste “Macbeth”, ótima escolha para as almas adultas que ainda procuram algum conforto estético nas salas de cinema.

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