sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (3/4)

Terceira da série de quatro resenhas a respeito da 36ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ocorrida entre 30 de setembro e 7 de outubro de 2017.

Quinto dia: 4 out. 2017, quarta-feira 

Os destaques do dia foram um conjunto de vistas dos Lumière recentemente comprado pelo George Eastman Museum e restaurado por um jovem recém-graduado, bolsista de num projeto fomentado pela Haghefilm Digital: uma sequência de vistas de uma fábrica de papel, de panoramas de sua fachada, tomados desde uma embarcação que cruza o rio que margeia o local (a exemplo do que se vê com essa sequência de imagens e, pouco tempo depois, com as referentes ao affaire Dreyfus, registrados por Méliès, a busca do cinema pelo encadeamento narrativo é contemporânea ao seu nascimento, colhendo influências de artes como a literatura); ou a correria de uma brigada do corpo de bombeiros rumo – presumivelmente, já que a vista não mostra – a um incêndio, com os populares curiosos a acompanharem-nos (e acompanharem, sobretudo, os movimentos da câmera, nunca dantes vistos...). Mesmo um acervo organizado como o dos Lumière revela surpresas. 
À noite, a Carmen de 1918, dirigida por Lubitsch, mostrou um artista em formação – ainda carente da sublime ironia que se tornaria a sua marca registrada. A bela jovem, desempenhada por Pola Negri, revelou-se, por sua fria sordidez, oriunda mais da pena de Mérimée que da ópera de Bizet - frieza resvalada do tema à música. O diretor ainda acertava o seu metrônomo; a falta de ritmo da obra afeta a música que Thibaudault acabou de lhe compor: grave e errática, carente dos sóis da Espanha ou de erotismo. Resta todavia Pola Negri, uma estrela no senso literal da palavra, a brilhar para além do tempo e do espaço, da fragilidade da trama ou da música. Ah, os deuses tão humanos – embora fantasmáticos e intangíveis – do cinema demonstram ainda merecer o seu quinhão de culto. 

Sexto dia: 5 out. 2017, quarta-feira 
As sessões noturnas do dia foram preenchidas pela película francesa La Femme Rêvée (1928), de Jean Durand – diretor da sequência de loucuras de Onésime, nos ano de 1910 – e pela película escandinava Glomdalsbruden (1926), de Carl Dreyer. 
La femme revée ainda na Espanha
O primeiro, de incontornável machismo, como corresponde ao grosso da produção da época. O segundo, embora voltado a uma moralidade atrelada à tradição, surpreendentemente crítico. No filme francês, o tipo macho-alfa é flagrado sendo cortejado por uma fêmea típica da haute gomme francesa, e a rechaçando em prol de sua viagem de trabalho à Espanha. Acidenta-se, todavia, no trajeto, e perde a visão (cegueira sem qualquer transcendência na trama para além do óbvio “Queria tanto poder ver para conhecer os seus traços.”, que o homem diz à mocinha que o salva). Um corte e a ação se concentra na casa da tal mocinha, jovem a qual a tia conservadora deseja ingressar no noviciado. 
Em Paris, la femme revée aprende o charleston
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A cor local da Espanha profunda surge de modo quase documental, no esquadrinhamento da hacienda espanhola e de uma corrida de bois que ali tem lugar. Esquecemo-nos do casal francês durante parte considerável da trama; falha dramatúrgica. O protagonista tem, graças aos cuidados da mocinha, a sua visão recuperada. Reciprocamente apaixonados, ele a leva dali a Paris. Inicia-se então uma investigação do dia-a-dia da alta goma parisiense. O homem quer transformar a pura – mas sensaborona – espanholinha na “mulher sonhada” à qual alude o título, inserindo-lhe uma dose do savoir faire do qual é dotada a jovem cheia de etiqueta – mas sem coração – com quem ele flerta no início. A leitura machista segue a cartilha dos anos 20, do qual raras produções escapam: o processo de transformação da jovem é narrado sem qualquer senso crítico, e o procedimento crápula do marido perdoado a priori pelo diretor. 
Glomdalsbruden (1926)
Salvou-se no filme a música, que fez algo que este ano como nunca percebi ser fundamental: numa exibição tão recuada de seu contexto histórico original, cabe à trilha sonora desempenhar o papel de análise crítica do que a tela mostra. Maud Nelissen e Frank Bockius fizeram bem isso, integrando à música, com boa dose de ironia, desde um conjunto dos temas populares norte-americanos aos quais a espanhola provinciana é obrigada a aderir, até sons incidentais que recuperam os primeiros usos dos sons no cinema, como o barulho da água a sublinhar os mergulhos piscina do Lido parisiense (espaço surreal enfronhado na Champs Elysées, mistura de café-cantante e clube de campo). 
Já o escandinavo Glomdalsbruden (ou The Bride of Glomdal) participa – sem estar nele integrado – dos eflúvios das seções da Giornate denominadas Nasty Women: logo de saída a jovem diz ao namorado (que o pai a proíbe de ver): “Meu pai está me vendendo como se eu fosse gado”. A resolução do conflito se dará por meio do diálogo – a tradição fala mais alto, obrigando os jovens a convencerem o pai dela ao consentimento para que o casamento se consuma. Ao final, toda a tensão concentrada emerge numa cena explícita de torvelinho: o namorado que caminha para as núpcias precisa vencer uma tormenta para que finalmente possa se unir à mulher que ele ama. O rio que os separa ganha função metafórica: representa quem sabe as águas espessas da tradição, sobre a qual se é preciso lançar com as largas braçadas da perseverança caso se queira conquistar paragens mais amenas.

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